Catarina
Suelen pousou o telefone no gancho e começou a correr. O brilho do sol poente
dominava Vila das Valquírias e atravessava suas janelas, inundando o cabelo da
menina numa luz ainda mais viva que seu tom acobreado. Cigarras cantavam a
melodia de uma vitória.
Ela
contornou a mesinha de tampo de vidro, atravessou a cozinha e cheiro de pipoca de
microondas inflou suas narinas, abriu uma porta, atravessou um corredor, fez
uma curva.
–
Meu pai! Meu pai tá vindo! – sorria para as paredes.
Atravessou
correndo o limiar que separava a área de serviço do quintal.
Só
então estacou.
Viu
Raquel de joelhos perto de onde cresciam palmeiras, seu vestido vermelho sujo
de terra aqui e ali. Além das palmeiras, roseiras, alfavacas e lírios também cresciam
ao redor de uma imponente laranjeira.
Catarina
parou e se aproximou de leve. Sua mãe pareceu sentir sua presença.
–
Foi ele? – virou-se e perguntou. A menina viu lágrimas brilhando no rosto da
outra.
Suelen
assentiu.
–
Acabou de ligar – disse à voz monótona. – Vem hoje à noite.
A
felicidade de Catarina se anuviou. Aproximou-se da mãe para confortá-la com um
abraço.
–
Edu logo vem, mamãe – disse Catarina, referindo-se ao irmão. Só então notou a
caixinha de sapatos no chão. Dentro havia um pássaro ferido numa das asas se
contorcendo sobre um lenço. Então soube que não era por Edu.
–
Nada consegui fazer.
Raquel,
a mãe de Catarina, tinha um fraco por animais. Sempre que via algum machucado
corria para ajudar. Preparava leito, fornecia água, comida e carinho. Às vezes
tinha sucesso, mas daquela vez o fracasso era visível no seu rosto.
Ficaram
ali abraçadas, mãe e filha. Catarina nada sentia quanto ao estúpido animal. Só
queria seu pai de volta e que sua mãe mandasse à empregada preparar coisas
saborosas.
Depois
de dez minutos o bem-te-vi cessou os movimentos. O ombro de Catarina estava
encharcado das sucessivas gotículas. Ajudou sua mãe a cavar e enterraram o
animal.
Sua
mãe uniu um maço de rosas e lírios e deu um beijo triste antes de atirar sobre
o túmulo.
Coisinha idiota. Fez bem ter
morrido logo.
Catarina
conduziu sua mãe para dentro da casa.
Meia
hora depois Eduardo voltou do jogo de futebol com o time da escola. O irmão de
Catarina tinha nove anos e já era quase da sua altura, tinha cabelos negros
desgrenhados e olhos castanhos. Havia-lhe certo sobrepeso, apesar da prática de
esportes.
–
Mãe, fiz três gols. Estamos na semifinal.
–
Que bom, meu filho. – Raquel abraçou o irmão de Catarina e encostou os lábios
nos cabelos desgrenhados. Sua expressão ainda fechada.
Catarina
correu para dar as novas. A rivalidade adolescente entre irmão e irmã ainda não
os havia atingido e naquele dia se falavam normalmente.
–
Edu, nosso pai tá vindo.
O
garoto olhou para a mãe.
–
É sério?
–
Sim. – Então ela sorriu. – Nossa família está completa de novo. Lurdes! – A
empregada logo apareceu. Trajava um vestido velho dado pela própria Raquel. –
Quero um churrasco hoje à noite. E tortas. E bolos.
–
O que faço com a pipoca, senhora?
–
Que pipoca? Ah, sim. Catarina, ainda quer?
A
menina fez que não.
–
Coma, Lurdes, se quiser.
Catarina
e Eduardo subiram as escadas rumo aos seus quartos. Tinham que preparar o que
mostrariam ao pai.
Catarina
banhou-se em água morna, dançou, cantarolou.
Mas
quem era aquela garota?
Catarina
Suelen era herdeira das duas famílias mais nobres de Vila das Valquírias. Tinha
uma estatura baixa mesmo para os tenros onze anos e era esbelta.
Quando
voltou para o quarto penteou os cabelos acobreados, que emolduravam o rosto em
forma de coração; tudo por puro instinto de frente para o espelho de
desnecessários dois metros de altura com borda de marfim. Tinha os olhos
castanho-claros – de herança materna –, mas não que ela gostasse disso. Se era
bonita? Bem, era certamente acima de bastante razoável. Mas para ela mesma,
detestava parecer-se tanto com sua mãe. Só não herdara as sardas nem o formato
oval do rosto.
Sua
mente era toda para o reencontro.
Fazia
três semanas que seu pai não voltava para casa. Dizia que substituía um
professor de Cálculo II na faculdade em que dava aulas lá em Salvador. Antes
daquele período Leonel chegava em casa nas sextas para segunda estar de volta
ao trabalho.
Catarina
ouvira histórias dos mais velhos dizendo que iriam trabalhar numa cidade grande
levando a família e voltariam somente depois de aposentados. Seu pai era de um
tipo diferente. Vila das Valquírias era o seu lar. Dizia que jamais abandonaria
aquela cidade. Recusara-se mesmo a ir trabalhar nos Estados Unidos. Mas sempre
que tinha tempo lá ia e voltava com presentes e histórias para Catarina.
Outro
fato era que seu pai nunca substituíra professor algum. Sempre colocava a
família a frente de tudo.
Afinal,
o que andara fazendo? E por que tanto gostava de Vila das Valquírias, uma
cidade de meros sessenta mil habitantes? Um físico e engenheiro tão talentoso
desperdiçava seu talento?
Catarina
desistiu de caminhar nessa linha de raciocínio. Era seu herói quem estava
vindo. Escutara sua calorosa voz pelo telefone. Dissera-lhe que estava se
arrumando para ir ao aeroporto. Dali a duas horas chegaria. Quase podia sentir
o cheiro do seu perfume e o gosto das guloseimas que trazia.
Catarina
começou a pensar no que havia feito naquelas três semanas para contar. Depois
de prender os cabelos, passou a vasculhar seu quarto.
O
ambiente em que Suelen dormia não era lá muito arrumado, principalmente porque
para a garota tudo o que não encontrava lugar para pôr, depositava em cima da
mesinha.
Sua
mãe sempre dissera para a empregada arrumá-la para a desaprovação da menina.
Sempre que arrumavam por ela, não conseguia encontrar suas coisas. Depois de
uma discussão no almoço meses atrás acertaram de deixar o quarto com a bagunça
que Catarina quisesse.
Suelen
foi pra a mesinha e encontrou desenhos, bastões de cola, um quebra-cabeças, um
rádio, a perna de uma boneca, cadernos, um urso de pelúcia, esmaltes, livros da
escola e um retrato.
A
foto mostrava Catarina e sua amiga Ana Cristina, uma garota morena sorridente
do bairro vizinho. Fora tirada de frente para a Sorveteria do Seu Júlio na
semana antecedente. Seu pai não havia visto aquela imagem.
Decidiu
que aquela seria a oportunidade.
Escutou
uma música popular tocar no quarto do irmão. Fechou a porta e deitou-se. Tinha
que descansar para passar o maior tempo possível com o pai. Se o pais deixassem
ficaria acordada madrugada adentro.
Teve
um sonho.
Andava
numa floresta sombria, e ventos gélidos atacavam sua tez. Estremecia enquanto
se desviava dos galhos mais baixos. Deu numa clareira. Viu uma rosa amarela e
sangue manchando-a... e para além dela. A clareira reluzia à luz lunar num
espetáculo sangrento.
Não
havia corpo, mas suspeitou de uma batalha ocorrera ali. Catarina pensou em
correr, mas viu que tinha uma espada na anca direita. Então seguiu os rastros
de sangue. No meio da clareira uma luz branca cegou-a e sentiu a dor de uma
flecha rasgar o seu coração.
Acordou
empurrando os lençóis e procurou a flecha cravada. Quase sorriu ao notar que
fora apenas um sonho.
Às
sete seu pai entrou na casa. Houvera um tempo em que Raquel, Eduardo e Catarina
iam buscar Leonel no aeroporto, mas depois ele começou a pegar táxi para
fazê-lo. Não queria incomodá-los toda semana naquela atividade.
Todos
o abraçaram. Catarina foi a primeira.
–
Pai, como foi lá?
–
Dar aulas é cansativo, crianças. Mas... notícia boa. Passarei uma semana com
vocês.
–
Por quê? – perguntaram todos de uma vez.
–
Estão terminando de pintar o prédio.
Catarina
não se recordava de seu pai já ter falado de pintura na faculdade em algum
momento. Mas quando ele tirou um pote de bolachinhas de goma da mochila seus
pensamentos se calaram.
Não
havia comida no mundo que Catarina mais adorasse que bolachas de goma. Afinal,
eram tão crocantes. E seu gosto doce quando derretidas no paladar!
Quando
em público Catarina jamais lambia a tampa do iogurte ou deixava o prato limpo,
mas quando era bolachinhas de goma não se importava em ingerir os farelos,
qualquer que fosse o argumento de sua educada mãe.
–
Crianças, deixem o pai de vocês sentar. Ele está cansado da viagem.
Raquel
caminhou agarrada ao marido. Quando se dispuseram na sala de estar de frente
para a televisão a família voltou a interagir.
–
Edu, trouxe isto pra você – disse Leonel, tirando um carrinho de controle
remoto da mochila. – Amor, seu presente está na mala. Lá em cima te entrego.
Eduardo
correu para a varanda com o brinquedo. Raquel sorriu, apertou a mão do esposo e
se beijaram.
Catarina
detestava animais e muitas crianças da sua idade, mas adorava o amor que via
nos pais.
–
E pra você, princesinha, isto – disse seu pai, já afastado dos lábios da esposa.
Leonel
retirou o celular da mochila e entregou à garota.
Catarina
sempre quisera ter um, mas sua mãe rebatia dizendo que era nova demais.
–
Você tem quase doze anos. Sua mãe e eu concordamos que já está na hora de ter
um. Dei a primeira carga e deixei salvo nossos celulares, o número de casa e o
de meu irmão.
Catarina
só tinha tio por parte paterna, e não se recordava de tê-lo visto algum dia.
Fez força e recordou algo sobre ele ser dono de uma rede de farmácias. Da parte
de sua mãe haviam morrido num acidente de carro nos Estados Unidos.
Seu
avô materno era deputado federal, e a esposa o acompanhava na vida política em
Brasília. Seu avô paterno morrera em 2002 e sua avó também trabalhava na rede
de farmácias em Salvador.
Assim,
aquele era o único local que Catarina podia chamar de lar. Não que aquilo a
desagradasse, pois, apesar de ser um local pequeno, Vila das Valquírias contava
com o fato de ter a Sorveteria do Seu Júlio, o Restaurante Cata-Vento, o
Castanheiro Místico, o parque aquático e o status de ser a cidade mais pacífica
do mundo.
Desde
que nascera Catarina ouvira falar de pouquíssimos casos de assassinatos,
sequestros e roubos. Até duvidava de que fossem verdadeiros. 2008 estava no seu
segundo mês e nada violento ocorrera até então.
A
menina esticou a mão para pegar o aparelho.
A
um toque a tela brilhou, iluminando seu rosto. Seus pais a observavam em
silêncio. A menina começou a vasculhar os menus e os toques telefônicos.
–
Filha, por que não liga para Ana? – perguntou sua mãe. – Conta do seu celular.
Suelen
pensou: Ela vai adorar saber disso.
Correu
para a agenda na mesinha do telefone e anotou o número no visor do seu aparelho
antes de pressionar o botão de ligar.
Começou
a subir as escadas quando os pais retomaram a conversa. A canção da chamada
pulsava em seu ouvido.
–
E então?
–
Um garoto em Vitória. Houve testemunhas.
–
Então temos explicação.
–
Dizem que ele sumiu do nada.
Ana
atendeu e Catarina correu escada acima.